Em artigo publicado na edição do Estadão do último sábado (15/11), o procurador-geral do Estado analisou a PEC da Segurança Pública.
Segundo ele, “trata-se se de um simulacro, porque a normatividade reivindicada já existe, a União não depende de emenda constitucional para que possa fazer o seu trabalho”.
Confira, abaixo, o artigo na íntegra:
Por que não precisamos de uma PEC da Segurança?
Por Rafael Arruda
Aprovar uma emenda à Constituição federal é coisa séria. Não se trata de banalidade ou algo de menor importância. Exige demonstração de necessidade. Daí a pergunta: a Proposta de Emenda à Constituição n.º 18/2025 – a chamada PEC da Segurança Pública – é realmente indispensável para o enfrentamento à criminalidade violenta e às facções criminosas que aterrorizam o País? Não, especialmente porque já há normatividade a respeito.
Desde 2018, a Lei n.º 13.675, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), já prevê tudo o que agora se anuncia como novidade: integração, coordenação, cooperação federativa, interoperabilidade e liderança situacional, orientadas por um Plano Nacional de Segurança Pública. Não há vácuo normativo. Há vácuo de gestão. Faltam ação administrativa, planejamento e vontade política para fazer valer o estabelecido na Lei 13.675/2018.
A PEC da Segurança virou álibi para a inação do governo federal. É marketing político: simbolismo normativo no lugar de política pública. Trata-se de um simulacro, porque a normatividade reivindicada já existe, a União não depende de emenda constitucional para que possa fazer o seu trabalho.
Marcelo Neves, no Brasil, já criticava o que chamou de “constitucionalização simbólica”: legislação-álibi que dá aparência de solução ou exibe boas intenções. Na Espanha, Pérez Luño descreveu a mesma lógica encobridora e manipuladora da “legislação simbólica”, em que tudo é aparência, criticável fachada.
A lei em vigor atribui à União a condução da Política Nacional de Segurança Pública (artigo 3.º) e estabelece a atuação integrada entre União, Estados, Distrito Federal e municípios (artigo 5.º, IV). Perguntas simples precisam ser feitas: que integração foi promovida no País desde a aprovação da norma? O governo central elaborou o plano nacional previsto? Que diálogo efetivo o Ministério da Justiça e Segurança Pública estabeleceu com os entes federados, para ações concretas de integração das forças de segurança federal e estaduais/distrital?
Os objetivos do plano nacional já constam da lei: integração em inteligência e gerenciamento de crises (artigo 6.º, I); modernização de equipamentos (artigo 6.º, III); interoperabilidade dos sistemas (artigo 6.º, VII); repressão a crimes transfronteiriços (artigo 6.º, VIII); intercâmbio de informações de inteligência, prisionais e sobre drogas (IX e X); e medidas permanentes contra o crime organizado (XVII). Está tudo na lei federal, que é lei de caráter geral.
O Sistema Único de Segurança Pública ainda elenca, como estratégias, integração, coordenação, cooperação federativa, interoperabilidade e liderança situacional (artigo 7.º). Em um país continental e que adota a forma federativa, cabe à União liderar esse processo. Quando isso não ocorre, os Estados se organizam por conta própria. Isso não é novidade. Já ocorre há algum tempo, por ação e gestão de governadores.
Um dos exemplos é o Consórcio de Desenvolvimento do Brasil Central, formado pelo Distrito Federal e pelos Estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Rondônia e Maranhão, por meio do convênio “polícia sem fronteiras”, para combater o crime organizado e aprimorar a segurança pública nos seus territórios. Essas unidades da Federação não precisaram de novo texto constitucional para agir: basta decisão política para fazer valer a previsão legal.
Insistir na PEC como “conquista” é coisa para inglês ver: movimento vistoso da máquina administrativa e legislativa para distrair. É populismo constitucional. Nada impede a União, há muito, de liderar um grande esforço coordenado contra as facções e o crime organizado, exceto a própria ausência de gestão e a falta de determinação político-administrativa.
A mesma lei de 2018 exige que o Ministério da Justiça e Segurança Pública detalhe objetivos, ações, metas, prioridades, indicadores e formas de financiamento e gestão das políticas de segurança pública (artigo 22, § 4.º). Onde está esse conjunto? O problema, como se vê, não é da Constituição ou de ausência de emenda, é de falta de gestão séria e realmente empenhada em enfrentar a criminalidade no País.
Daí que, se a União se omite, Estados e Distrito Federal, por decisão política dos seus governadores, autorizados pela Lei do Susp, avançam e constroem medidas de cooperação e integração necessárias à proteção de seus territórios. O anunciado Consórcio da Paz é o mais recente exemplo da integração surgida pela força e determinação das unidades da Federação. É o Estado administrativo em movimento para suprir aquilo que o governo federal não cumpre.
Em suma, a PEC da Segurança Pública, relativamente à pretendida integração nacional, não supera o teste da necessidade normativa. É prescindível e, como adorno supérfluo, flerta com o abuso do poder de legislar. Assim, com senso crítico, responsabilidade e respeito à Constituição, deputados federais e senadores devem dizer não a essa proposta. A PEC da Segurança Pública, como obra de mera ostentação, deve ser rejeitada integralmente pelo Congresso Nacional.
Rafael Arruda é procurador-geral do Estado de Goiás, doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestre em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal)
Fonte: PGE - GO